Falsos traficantes ameaçam e exigem dinheiro Crédito: Marina Silva
“Nós só não invadiu (sic) a sua casa ainda porque teve morador antigo que pediu para conversar”, diz trecho de mensagem ameaçadora que ainda consta no celular de um administrador, vítima do 'golpe da facção', a mais nova artimanha dos estelionatários. Com o pânico da população em meio à alta da violência armada em Salvador, eles se passam por traficantes para extorquir dinheiro de pessoas que vivem em áreas conflagradas.
Usam mensagens, fazem ligações e, para aumentar o terror psicológico, dizem conhecer a família das vítimas. A promessa é de derramar sangue caso as exigências não sejam cumpridas. As transferências são via Pix. Há pouco mais de dois meses, a Polícia Civil já registrou pelo menos 10 casos do tipo na capital.
Há duas semanas, o administrador, que mora em Sussuarana, recebeu mensagens ameaçadoras no celular corporativo, inclusive o vídeo de um homem manuseando uma pistola. Ele teve “um impacto de imediato”, mas logo em seguida, fez uma busca na internet e encontrou diversos relatos de pessoas denunciando o novo golpe na praça.
“Foi aí que notei algumas inconsistências, porque ele dizia que tinha fotos minhas e de minha família, mas não relatava onde as imagens foram feitas, quem eram os meus parentes. Disse que eu estava caguetando o tráfico e que não tinha invadido a minha casa ainda porque um morador antigo pediu para ‘resolver da melhor forma’, mas não falou o nome do morador e nem o bairro. E se eu estivesse caguetando, como não estou, o tráfico não ia avisar, ia fazer! A gente sabe como funciona”, disse ele, que registrou um boletim na delegacia virtual.
O administrador disse ainda que participa de um grupo de notícias do bairro e outras pessoas receberam as mesmas mensagens. “A gente está vivendo um período de incertezas, de medo. A população está fragilizada por causa da insegurança em Salvador. Então, eles vão aproveitar este momento para extorquir. A vizinha de uma amiga, que é dona de um salão, fez um Pix de R$ 3 mil porque disseram que iam pôr fogo no estabelecimento dela. Só depois que descobriu que era um golpe, mas ela não recuperou o dinheiro”, contou ele.
Falsos traficantes ameaçam moradores de comunidades conflagradas Crédito: Divulgação
Já uma dona de casa que mora no Uruguai levou alguns dias para descobrir que tudo não passava de um golpe. “Ele me chamou de caguete de polícia, que o Coroa já estava sabendo e que já tinha autorizado a encher a minha cara de bala. Eu gelei! Ele disse que tinha perdido arma, droga, que eu tinha que pagar o prejuízo. Aí eu disse que era uma brincadeira de mau gosto, que nunca tive envolvimento nenhum (com o crime). Ele escreveu que, se eu estava achando que era brincadeira, na hora que o trem entrasse, que eu ia ver, que eu pagasse R$ 1 mil. Não respondi mais nada, nem atendi às ligações. Respirei fundo e fui direto à delegacia”, relatou a dona de casa, vítima dos criminosos há pouco mais de uma semana.
Na delegacia, os agentes informaram que outros moradores têm recebido vídeos, mensagens e fotos de golpistas se passando por membros de facção criminosa e que, em alguns casos, a estrutura do texto era a mesma, que a única diferença estava nos dados pessoais das vítimas.
“Mesmo sabendo que tudo se tratava de um golpe, eu fiquei apavorada. No dia seguinte, quando saí de casa, vi um desconhecido em frente a minha porta e voltei e me tranquei. Pela greta, vi que um vizinho o abraçou. Era um amigo dele. No mesmo dia, recebi alguns amigos e sentei de costas pra rua. Na mesma hora veio um desespero, como se alguém fosse chegar de moto e atirar em mim pelas costas. Dei um pulo da cadeira e sentei em outra posição. Na mesma semana, saí de carro com o meu marido e uma moto com dois homens emparelhou na janela e eu me abaixei, porque tinha certeza que iam atirar em mim. Fiquei muito mal. É uma sensação terrível. Não desejo a ninguém”, desabafou.
A dona de casa acredita que as mensagens e ligações foram originadas do Complexo Penitenciário da Mata Escura. “Tenho um amigo que rastreou o número e deu em Mata Escura, deve ser de lá de dentro da detenção. O número estava no nome de uma Tatiana. Provavelmente um aparelho roubado, que eles desbloqueiam facilmente e têm acesso à agenda de contatos”, relatou.
E ela não foi a única da família que foi alvo do golpe. A irmã, que mora em um apartamento em Tancredo Neves, também viveu momentos de terror. “Ela recebeu uma ligação, dizendo o nome, o endereço, o nome do marido, onde ele trabalhava, dizendo assim: ‘Olhe, pague o meu dinheiro, você está me devendo R$ 3 mil. Você me entregou. Ou me paga ou vou botar fogo no seu apartamento agora!’. Ela ficou tão apavorada, que começou a andar agachada dentro de casa, porque ela tinha impressão que alguém estava vigiando através da janela”, relatou a mulher.
Um comerciante do Alto das Pombas, apavorado, não pensou duas vezes e transferiu para os golpistas R$ 3 mil, após receber via SMS (mensagem de texto) a seguinte mensagem: "Vou manda invadi essa disgraca ai. Mata voce sua mae e seu pai e melhor voce atender (sic)’. Ele ainda citou como exemplo o caso do vendedor de gás, em Cosme de Farias”, contou o comerciante, fazendo referência à morte de Gerson Leopoldino Andrade, 69, executado pelo Comando Vermelho depois de ter se negado a pagar taxa de R$ 7 mil para continuar trabalhando no bairro. Depois de registrar o boletim de ocorrência, o comerciante descobriu que o Pix foi para uma conta em Minas Gerais. Ele tentou reaver a quantia com o banco, mas sem sucesso.
Apavorados, moradores acabam caindo no 'golpe da facção' Crédito: Divulgação
Interior
A situação não é diferente para quem vive no interior do estado. Em Conceição de Feira, por exemplo, a dona de um restaurante recebeu a foto de uma arma e emojis (imagem que transmite a mesma ideia de uma palavra ou frase). “Fiquei desesperada. Não saia de casa, não ia trabalhar. Foram dias inteiros de pânico. Mandaram também áudios dizendo que iam matar a mim e a minha família porque eu havia feito uma denúncia, que gerou uma operação policial naquela semana, e que por isso, o pessoal dele perdeu drogas e armas”, contou a comerciante, que recebeu as mensagens em agosto.
Ela disse que não estendeu o diálogo, ao ponto de o criminoso exigir o pagamento, e que foi logo à companhia da Polícia Militar da cidade, onde trabalha um parente. “Foi aí que fiquei sabendo que, naquela ocasião, a polícia não tinha realizado nenhuma operação. Lá, fui alertada para bloquear o número e nunca mais recebi mensagens do tipo”, contou.
O novo golpe também chegou ao interior do estado Crédito: Divulgação
Perfis variados
Segundo o coordenador do Laboratório de Inteligência Cibernética da Polícia Civil (Ciberlab), delegado Delmar Bittencourt, a modalidade vem sendo aplicada no país já há algum tempo, mas em Salvador ganhou força nos últimos meses. “Com essas informações que vêm circulando na mídia, em relação a esses ataques de facções, isso ganhou uma força. Tenho no máximo 10 ocorrências do ‘golpe da facção’, de agosto pra cá. Têm alguns casos que ficamos sabendo de ‘ouvir dizer’, mas não houve registro de ocorrência. Se não há registro, fica complicado para a polícia saber, de fato, o que está acontecendo”, declarou.
Até agora, durante as investigações, não foi constatado nenhum envolvimento de integrantes de facções no golpe. “Quem mexe com o crime organizado não tem acesso aos dados pessoais. Isso é coisa de quem está no mundo virtual praticando golpes”, disse.
O trabalho do Ciberlab é de inteligência: identifica os suspeitos e as informações são encaminhadas para as unidades operacionais, como as delegacias. Bittencourt disse que, no caso do “golpe da facção”, a polícia já sabe quem são os criminosos. “Em alguns casos, são pessoas que não têm passagem, mas acharam um método fácil de ganhar dinheiro. Outras já respondem por estelionato. São perfis variados. Tem gente que nunca foi alcançada”, disse ele, pontuando que já foram solicitados mandados judiciais. No caso de prisão, essas pessoas podem responder por fraude eletrônica. “E a pena é alta, de quatro a oito anos de reclusão, artigo 171 do Código Penal”, explicou.
Apesar de todo o terrorismo dos estelionatários, o delegado diz que, em hipótese alguma, deve se fazer as transações bancárias. Mas caso a vítima só tenha percebido que se tratava de um golpe depois de ter feito o Pix, ela ainda tem uma chance mínima de recuperar o dinheiro. “Se o dinheiro ainda estiver na conta do banco destino, poderá ser feito o bloqueio e a devolução. Mas se não estiver, o banco não tem responsabilidade em restituir o valor. O correto é não fazer transferência”, explicou o delegado.
O coordenador do Ciberlab disse o que é preciso fazer, caso alguém seja alvo do golpe dos falsos traficantes. “Recebeu a ligação ou qualquer outro tipo de mensagem, não alimente esse diálogo. Salve os dados das informações mais importantes, como o número usado par essa extorsão, bloqueia o número e registra a ocorrência”, declarou o delegado Bittencourt.
Bruno Bittar, especialista em segurança digital da BQB Tecnologia, explica que é importante reforçar os cuidados em caso de tentativas de golpe. "Quando receber um contato sempre diga, 'Me ligue já já, irei me certificar dessa informação'. Não custa nada ter prudência. Muitos golpes deixam e ser aplicados com esse método. Isso mostra que a vítima não está tão fácil, suscetível a cair", destaca.
A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) foi procurada por e-mail, enviado na sexta-feira (6) às 9h09, e também por meio de mensagem por aplicativo no mesmo horário, mas não houve resposta até esse domingo (8).
Fonte Correio24horas