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A primeira agressão contra Maria Eduarda aconteceu quando ela ainda namorava. Pedro puxou seu cabelo e bateu sua cabeça contra um armário. Depois, os dois reataram e se casaram. As agressões voltaram a acontecer, e os momentos de reconciliação e de suposta paz também. O casamento – e o silêncio de Maria Eduarda – duraram 25 anos.
O que a Maria Eduarda viveu é algo que acontece com muitas outras mulheres, e de forma bem parecida, independente da classe social, raça, cidade ou país. Ela ficou, por anos, presa no ciclo do relacionamento abusivo.
A primeira pesquisadora a identificar esse ciclo e a entender que os agressores seguem um padrão de comportamento foi a psicóloga norte-americana Lenore E. Walker. As conclusões dela foram feitas na década de 1970, depois de entrevistar mais de 1.500 vítimas de violência doméstica. O ciclo foi descrito da seguinte forma:
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Construção das tensões: ocorrem o controle do comportamento, o isolamento da mulher, ofensas verbais e humilhações
Explosão da violência: há agressão física, violência patrimonial, violência moral, violência sexual ou violência psicológica
Lua de mel: o homem pede perdão, enche a mulher de promessas de mudança, há reconciliação e reconstrução do vínculo
Relacionamentos abusivos começam de forma parecida como todos os outros: o casal se apaixona e cria um forte vínculo. Mas, segundo especialistas ouvidas pelo G1, os relacionamentos abusivos já apresentam alguns sinais preocupantes logo no início, que têm a ver com o controle da parceira.
“Existe aquela intensidade de os relacionamentos se tornarem muito sérios em pouquíssimo tempo. Um estabelecimento entre amor e confiança muito grande. O parceiro diz: ‘se você me ama de verdade, você vai fornecer a senha das suas redes sociais’, ‘se você me ama de verdade, você vai ficar só comigo’”, explica Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo e integrante da Promotoria Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica.
E logo começa o processo de isolamento dessa mulher da sua família, de amigos e até do trabalho. “Assim, aos poucos, essa mulher vai cada vez mais ficando isolada, até o ponto em que ela não consegue sequer compartilhar as suas angústias, suas dores, e pedir ajuda”, afirma Silvia.
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Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que, muitas vezes, esse comportamento controlador acaba sendo entendido pela mulher como manifestação de amor. “A mulher diz: ‘ele faz isso porque ele é ciumento e me ama muito’. Ela também costuma achar que ela foi responsável pela tensão que se instalou.”
Em contato com vítimas de relacionamentos abusivos, a promotora Silvia Chakian ouviu por diversas vezes relatos da sensação de estar “permanentemente pisando em ovos”, um estado de alerta constante.
“Muitas dessas mulheres acabam acreditando que o agressor sabe de tudo e vê tudo. O que a gente vê são mulheres completamente sem capacidade de reação.”
Conforme vão se intensificando as tensões, humilhações e ofensas, costuma acontecer uma explosão de violência, que pode ser de vários tipos, como sexual ou física.
Depois disso, há a fase da lua de mel e suposta calmaria. “Muitas mulheres, de fato, acreditam nessa mudança de comportamento do agressor. Elas perdoam, permanecem naquela relação abusiva e até violenta acreditando que aquilo não é tão grave assim, que ele vai tomar jeito, que ela vai mudar o seu próprio comportamento e, com isso, vai mudar o comportamento do parceiro”, diz a promotora.
Em muitos casos, é só no momento da violência aguda que a mulher vai procurar ajuda, e já pode ser tarde demais.
Como quebrar o ciclo da violência
Samira diz que é possível prevenir o feminicídio, porque ele é o fruto de uma violência progressiva. Por isso, é muito importante que as mulheres tenham informações sobre o que caracteriza um relacionamento abusivo.
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“A gente não está falando de uma violência que é passional e que o homem chega um dia em casa e enlouquecido e vai atentar contra a vida da sua companheira. A gente está falando de uma série de violências que vão escalando.”
A raiz da violência de gênero está nas relações de poder entre homens e mulheres. Por isso é tão difícil identificar relacionamentos abusivos e quebrar o ciclo. Ao longo de séculos, leis, discursos, práticas e costumes reforçaram a dominação masculina e a submissão feminina. E esse desequilíbrio entre os gêneros criou um terreno fértil para a violência.
Nas últimas décadas, mudanças sociais e culturais e a criação de novas leis criminalizaram a violência doméstica em muitos países, inclusive no Brasil. “O feminicídio não é mais compreendido como um crime passional, um crime de amor. Mas, sim, uma manifestação de ódio ao feminino, uma manifestação de poder sobre o corpo e a sexualidade das mulheres”, diz Silvia.
Não bastam leis para impedir que inúmeros casos de violência e feminicídio ainda aconteçam no Brasil. Para as especialistas, falta uma consciência social maior para enfrentar esses problemas.
“A gente precisa garantir que, socialmente, essa violência contra a mulher ela seja reprovável e que ela não seja compreendida como um problema da esfera doméstica, de ordem privada”, diz Samira.
Além disso, avalia a socióloga, as vítimas ainda precisam ser melhor amparadas pelo Estado e pela Justiça.
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"Não é só um problema penal, que a justiça criminal vai resolver. Tem questão que perpassa a área da família, porque a vítima precisa do divórcio e da separação, da pensão alimentícia, da guarda dos filhos. Ela tem uma questão assistencial, porque a mulher precisa ter autonomia financeira, precisa ter acesso às políticas habitacional. Tem ainda a educação, a saúde. É uma série de fatores que podem contribuir para que essa mulher possa ser posicionada na sociedade como estratégia para livrá-la da violência", diz a promotora Silvia Chakian.
Fonte: G1
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